As concessões do Pacaembu, do Parque da Água Branca, do Ibirapuera e a gentrificação dos equipamentos públicos de lazer na cidade de São Paulo.
Marcia Semer* - artigo publicado na Revista PUB, 19/04/2025
As gestões do ex-prefeito e ex-governador do Estado de São
Paulo João Dória, aquele que não é político, mas gestor, trouxe para a
Administração Pública o olhar empresarial aplicado a tudo que se tocava, em
movimento da espécie Midas negocial.
E foi na esteira dessa compreensão do Estado como negócio que se deram as
concessões de três icônicos equipamentos públicos de lazer da cidade de São
Paulo: o Pacaembu, o Parque da Água Branca (ambos equipamentos estaduais) e o
Ibirapuera (este espaço pertencente à municipalidade).
O lazer, nem sei se todos sabem, mas é um direito constitucional do cidadão, a
teor da Constituição Federal de 1988, dita, não por acaso, Constituição Cidadã.
Mais precisamente, o lazer é um direito fundamental, um direito fundamental
social, inscrito no caput ou cabeça do artigo 6º, cujo texto diz “São direitos
sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o
transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à
maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma da
Constituição.”.
O lazer, portanto, integra esse elenco civilizatório de direitos expressamente nomeados no diploma normativo mais relevante da nação. Obviamente isso não é pouca coisa e tem significado.
As praças são equipamentos públicos de lazer, espaços de uso coletivo, que “podem ser usados por todos em igualdade de condições, sem necessidade de consentimento individualizado por parte da Administração”, ensina a jurista Maria Sylvia Zanella di Pietro. Os parques e os equipamentos ou complexos esportivos públicos, por sua vez, também constituem equipamentos de lazer que podem ser usados por todos em igualdade de condições e demandar ou não algum tipo de exigência para o uso, seja o pagamento de ingresso para a visita ou o cadastramento como usuário.
Na cidade de São Paulo existem diversos equipamentos públicos de lazer e até
pouco tempo atrás todos eram mantidos e geridos pelo Poder Público e usufruídos
pela coletividade em sua inteireza, representando espaços de partilhamento
horizontal da cidadania.
Não obstante, a pseudo despolitização da política introduziu no cenário da
cidade a figura dos equipamentos públicos de lazer concedidos a particulares.
Assim, três ícones de lazer da Pauliceia, o Parque o Ibirapuera, o Parque da
Água Branca e o Complexo Esportivo do Pacaembu são hoje equipamentos concedidos
a setores privados, empresariais, que gerem o uso desses espaços públicos pela
cidadania.
Pra quem olha de relance, a experiência jurídica e política neoliberal nada
mudou. Afinal, o Ibirapuera continua lindo, o Parque da Água Branca segue
aberto diária e gratuitamente ao público e o Pacaembu está sendo
“revitalizado”.
Mas para o cidadão atento que frequenta esses espaços as
mudanças não passam despercebidas.
No Ibirapuera restaurantes de luxo se instalaram e se é
imagem de sofisticação chegar para o almoço ou para o jantar em carrinhos de
golfe que circulam em meio à vegetação exuberante do lugar, parece inequívoco
que esse prazer específico não está acessível a todos, estabelecida aí uma
clivagem na máxima do uso do parque público como espaço de partilhamento
horizontal da cidadania. Cria-se e naturaliza-se que mesmo nos espaços públicos
é admissível o acesso seletivo e censitário a determinados recantos, aberta e
chancelada a vez preferencial dos mais iguais.
No Parque da Água Branca, um parque muito peculiar de perfil rural, onde as pessoas fazem picnic e vão à feirinha de produtos orgânicos, prenderam as galinhas, gansos e pavões que andavam soltos pelo lugar e faziam a festa de crianças e adultos, sumiram os gatos e a conservação andou precária. Agora, o parque será o cenário da Casa Cor, uma exposição de decoração de luxo. Suas diversas instalações serão acomodadas nos diferentes prédios de arquitetura muito característica existentes no parque, mas não estarão acessíveis a todos. O Casa Cor costuma ser evento pago, e bem pago que exibe coisas belas, é inegável, mas inalcançáveis para a grande maioria dos mortais. Mais uma vez, é o espaço público “ensinando” que é natural que o acesso a determinado tipo de lazer desenvolvido em instalações públicas seja reservado a quem pode pagar por elas.
Por fim, o Pacaembu, equipamento concedido e que agora se chama Arena Mercado
Livre Pacaembu, depois de alguns anos de obras ainda incompletas, atrasos e
inundação, abriu ao público. Trocaram as históricas cadeiras de ripa, acabaram
com o tobogã (sem restaurar a concha acústica. No lugar haverá, dizem, um hotel
e escritórios), puseram piso emborrachado na pista de atletismo, grama
sintética no gramado, modernizaram a piscina. Tá visualmente bonito, embora não
seja o mesmo Pacaembu. Mas dizer que abriu ao público, como se propagandeia é
um certo exagero. O acesso à pista de atletismo, que as pessoas já começavam a
frequentar desde o anúncio da abertura ao público, virou obra de ficção. Faz
mais de mês que é só olhar o site mercadolivre.arenapacaembu pra ver que o uso
da pista está vetado. Ali se lê Cronograma de Funcionamento dos Aparelhos
Esportivos, Pista de Atletismo, Fechado. Assim, o que se tem é que em 30 dias
ou mais o acesso ao lazer na pista de atletismo simplesmente inexistiu. Uma
semana era show de um sertanejo, outra semana era show de outros, outra era sei
lá o quê. E nem vou falar aqui do som desses eventos ecoando alto e por horas
pelo bairro. Esse é outro assunto. O fato é que o lazer no Pacaembu ficou
restrito a quem frequenta e paga pelos shows ali realizados. Nada público e
tudo privado.
Os equipamentos de lazer, sendo direito fundamental,
deveriam servir à cidadania e em especial aos valores de inclusão e igualdade.
Quer-me parecer que a destinação negocial desses espaços enfrenta inadequações
importantes porque desvirtuam a finalidade primordial dos equipamentos de lazer
que é promover, sem distinção, o acesso de todos à diversão.
*Marcia Maria Barreta Fernandes Semer. Advogada. Procuradora do Estado de São
Paulo aposentada. Mestre em Direito Administrativo e Doutora em Direito do
Estado pela USP. Membro integrante do Conselho Consultivo do IBAP, escreve
regularmente todo dia 19 na Revista PUB.