Costuma-se dizer que o problema da habitação social é de difícil resolução porque faltam terra e recursos. É verdade, mas o caso que vou relatar mostra que em São Paulo não é só isso.
Há algo de mais podre no reino da prefeitura paulistana.
Só a segregação urbana estrutural ou, porque não dizer, um
racismo urbanístico enrustido entre os atuais gestores municipais, pode
explicar o descaso com que os antigos moradores das favelas do Sapo e da
Aldeinha são tratados. Isso apesar de a prefeitura dispor de terreno e
recursos, que só podem ser utilizados para essa finalidade.
Há 14 anos, os moradores dessas comunidades, pobres e majoritariamente negros, foram removidos de suas casas na Água Branca pela prefeitura para fazer obras públicas e ainda não foram atendidos com novas moradias a que têm direito por lei.
Não é falta de terra, nem de dinheiro, nem de lei. É falta de vergonha na cara dos gestores da São Paulo Urbanismo, da Cohab-SP, dos secretários de urbanismo e habitação e dos prefeitos dos últimos cinco anos que estão enrolando o atendimento, desrespeitando as leis, o Grupo Gestor da Operação Urbana Água Branca, o Ministério Público e até a Justiça.
Não existe nenhuma razão para isso fora uma incompetência incomum até para os piores padrões da gestão pública, ou, talvez, o preconceito em construir um conjunto habitacional de qualidade, em uma área bem localizada, destinado a pobres e negros, ao lado de empreendimentos privados de luxo.
A história completa é a seguinte.
Entre 2007 e 2012, a gestão Kassab removeu 571 famílias da Favela Aldeinha, para construir a alça de um viaduto, e 489 famílias da Favelado do Sapo, que estavam em risco de vida, junto ao córrego Água Branca, sem prover o atendimento habitacional definitivo para os moradores, previsto pela Lei 11.774/1995 da Operação Urbana Água Branca (OUAB).
Além da lei municipal, o Estatuto da Cidade também determina o atendimento habitacional a famílias removidas para a realização de obras públicas. Apesar disso, a prefeitura negligenciou e nada foi feito na época.Em 2013, durante a tramitação da revisão da OUAB na Câmara Municipal, o Ministério Público Estadual (MP) abriu uma ação civil pública, acatada pela Justiça, para bloquear os R$ 545 milhões depositados no Fundo Especial da Operação Urbana Agua Branca (FEAB) até que as intervenções não executadas da OUAB, como o atendimento dos moradores do Sapo e da Aldeinha, a canalização do córrego Agua Preta e o prolongamento da Avenida Auro de Moura Andrade, fossem realizados. Hoje, o saldo dessa conta está em R$ 688,5 milhões.
Em novembro de 2013 a Câmara Municipal aprovou a Lei 15.893/2013 que reviu a lei anterior e criou a Operação Urbana Consorciada Água Branca (OUCAB). Como vereador, membro da Comissão de Política Urbana, participei da formalização de uma solução para a questão das favelas do Sapo e Aldeinha, acompanhada de perto pelo MP.
O artigo 8º da nova lei prevê a construção das habitações na própria região, com os recursos do Fundo Especial da Operação Urbana (FEAB), bloqueados pela Justiça até que isso fosse feito. O MP abriu o inquérito civil 414/2013 para acompanhar a realização das intervenções previstas nesse artigo.
Para a construção das unidades habitacionais, a lei destinou um terreno municipal de 145 mil metros quadrados, no subsetor A1 da OUCAB, na Avenida Marquês de São Vicente, em frente ao chamado Jardim das Perdizes, onde seriam implantadas também uma UBS, um CEU e um parque.
A intervenção, além do caráter social, tem uma função urbanística estratégica, prevista no Plano Diretor, pois ocuparia um terreno subutilizado com habitação social, em uma região bem localizada, o Distrito da Barra Funda, que tem a menor densidade populacional da Zona Urbana do município.
Entre 2014 e 2016, na gestão Haddad, o processo avançou,
devagar na minha opinião, mas andou. Em 2014 foi instalado o Grupo de Gestão da
OUCAB, previsto na lei, constituído por representantes da sociedade civil e da
prefeitura. A prefeitura, com a aprovação do Grupo de Gestão, propôs um
Concurso Público Nacional para realizar o Projeto de Urbanização da área.
As famílias removidas das favelas Aldeinha e Sapo participaram de oficinas para debater as diretrizes do projeto e, em 2015, o concurso foi realizado. O Estúdio 41, um escritório de arquitetura de Curitiba, foi o vencedor e foi contratado para desenvolver o projeto básico.
Em 2016, o projeto com 728 unidades foi apresentado para os futuros moradores e a SP-Urbanismo, responsável pela Operação Urbana, previu a entrega dos apartamentos em 2020. Mas, a partir daí o projeto travou.
Em 2017, a gestão Doria suspendeu o contrato do Estúdio 41, sob alegação que queria construir o conjunto através de uma Parceria Público-Privada (PPP). Com o apoio dos representantes da sociedade civil do Grupo Gestor, o MP rejeitou a ideia, pois a própria lógica de uma PPP não permite o atendimento de moradores de baixa renda.
Somente em 2019, após muita pressão do Grupo Gestor, do MP e da Justiça, a prefeitura retomou o contrato com o Estúdio 41. Mas o boicote ao projeto teve seguimento.
Em fevereiro de 2020, a prefeitura solicitou ao MP e à Justiça a liberação de R$ 151 milhões dos recursos bloqueados, para licitar e contratar o projeto executivo e as obras. Foi atendida rapidamente, mas até hoje, depois de 21 meses, ainda não publicou esse edital de licitação.
Em fevereiro de 2021, o Juiz da 4ª Vara da Fazenda Pública da Capital (TJSP), a pedido do MP, intimou a prefeitura a responder o que foi feito com o dinheiro liberado, solicitação que voltou a ser feita repetidas vezes nesse ano.
A essas intimações, a prefeitura sempre responde que "em poucos dias as pendências relacionadas à finalização do edital estariam resolvidas". Afirmou que o edital seria publicado em junho, depois em julho, depois em agosto, depois em outubro, mas isso nunca acontece. A última intimação foi feita pelo juiz em 8 de novembro.
No Grupo Gestor, os representantes da prefeitura não apresentam os motivos para os reiterados adiamentos. A pergunta que fica no ar é: por que um empreendimento de habitação social, com um projeto urbanístico e arquitetônico de alta qualidade, inserido em uma área bem localizada, com terra e recursos reservados por lei, é tratado com tanta negligência, enquanto obras como o Anhangabaú e Parque Augusta, a custos exorbitantes e menor prioridade social, saíram em pouco tempo?
O desleixo e desprezo com que os moradores das favelas do Sapo e Aldeinha tem sido tratados pela prefeitura só pode ter uma justificativa. Pobres e majoritariamente negros, são considerados cidadãos de 2ª categoria, que podem ser negligenciados sem explicação.
Não fosse a existência de um Grupo Gestor atuante e o forte apoio que eles têm tido do MP e da Justiça, esse projeto já teria ido para a gaveta dos empreendimentos não realizados.
O fato é que ele contraria a lógica de segregação urbana e racismo urbanístico que orienta a gestão municipal desde 2017, que se caracteriza pela venda ou concessão do patrimônio municipal para a realização de negócios privados.
Espero que o prefeito Ricardo Nunes (MDB), que como vereador
votou a favor da lei que obrigou a prefeitura a atender essas comunidades e
está há apenas seis meses no cargo, chame seus subordinados e diga para terem vergonha
na cara, pois em sua gestão racismo é inadmissível.
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