Paula Freire Santoro, Laisa Stroher, Jupira Cauhy, Henrique Giovani, Débora Ungaretti*
Virada de ano sempre costuma trazer surpresas. São
famosas as leis aprovadas no período de festas de final de ano, e este ano não
foi diferente. Além de estarmos vivendo uma verdadeira “boiada urbanística” em
meio à pandemia, os vereadores têm engordado as leis em debate, colocando
vários “submarinos” em projetos de lei (PLs) que terminam ou ampliando, ou, por
vezes, até perdendo seu objetivo original.
Um destes PLs previa a concessão de uso de 3
imóveis públicos para entidades, e passou, em um dia, para (i) concessão, venda
ou permuta de dezenas de áreas municipais; além de (ii) alterar procedimentos
para a venda de imóveis relativos à avaliação e determinação de preço; e (iii)
cancelamentos de trechos viários já aprovados, compondo uma verdadeira salada
mista, dentro de um quadro de várias tentativas regulatórias para
“desestatizar” áreas públicas da Prefeitura de São Paulo.
Novamente esbarramos em uma gestão das terras
públicas sem planejamento algum, tratando caso-a-caso os imóveis, parecendo
apenas servir para facilitar a transferência e privatização de terras públicas
municipais, sem compreender o impacto dessas desestatizações para a cidade, ou
respeitar processos participativos que têm discutido as transformações urbanas.
E mais que isso, encontramos uma estratégia contraditória por parte do poder
público, que estaria vendendo ou concedendo imóveis que depois teria que
desapropriar ou cancelar a concessão para fazer intervenções públicas para as
quais já têm lei, projetos e recursos destinados. Qual a intencionalidade de se
vender (ou ceder) imóveis que precisarão ser readquiridos pela Prefeitura?
É o caso de três dos imóveis incluídos no pacote, que se forem vendidos ou concedidos, inviabilizarão ações previstas na lei 15.893/2013 da Operação Urbana Consorciada Água Branca, que já foram priorizadas pelo Grupo de Gestão, possuem projeto e recursos definidos! Na expressão recentemente utilizada pelo urbanista Nabil Bonduki, só o racismo estrutural explica porque as intervenções não estão sendo realizadas pelo poder público!
O milagre de Natal
O texto inicial do PL 756 apresentado em 10 de
novembro e aprovado em 1ª votação em 08 de dezembro de 2021, envolvia apenas
três imóveis na Rua Pedro de Toledo, Distrito de Vila Mariana, que seriam
concedidas por 40 anos para associações que promovem atividades assistenciais
voltadas a pessoas com deficiência ou doenças raras. De repente virou uma
bricolagem multiplicada em inúmeras áreas, de diferentes trechos de projetos de
lei ainda não aprovados, com propósitos diversos e muitos sem objetivos
identificáveis. Na sexta-feira à noite de 17 de dezembro, às vésperas do Natal,
o substitutivo do projeto de lei 756/2021, que
previu essas alterações, foi aprovado pela maioria dos vereadores em 2ª votação
(fonte: processo no site da Câmara de Vereadores, 06 jan. 2022).
Este substitutivo relâmpago engordou o PL original
de 15 para 30 artigos, e de três áreas passou a abranger dezenas de áreas
públicas! Além de 22 imóveis definidos, o PL autorizou a alienação de áreas
lindeiras a terrenos listados no Plano Municipal de Desestatização, sem
identificá-las (Art. 20, inciso III, parag. 4). A Lei não traz mapas ou
identifica com precisão a localização e os limites dos imóveis.
Hoje, 12 de janeiro de 2022, o PL foi sancionado
pelo prefeito, agora Lei 17.735/2022. Aprovaram um cheque em branco:
quais e quantos imóveis são esses? Quais os tipos de usos e ocupações
praticados neles hoje? A quais interesses estão submetidas estas transferências
de terras? Lembrando que, muitas vezes, os recursos gerados com a venda de
imóveis públicos não são suficientes nem para relocar um uso atualmente
praticado.
O que apresentaremos a seguir é uma interpretação
das informações da Lei e de pesquisas pelos representantes da sociedade civil
no Grupo de Gestão da Operação Urbana Consorciada Água Branca (GGOUCAB).
Três áreas dentro da Operação Urbana Consorciada
Água Branca
Os/as conselheiros/as do GGOUCAB foram
surpreendidos ao tomarem ciência apenas durante a sessão no plenário que três
dos terrenos do PL 756 estão associados a intervenções urbanísticas previstas
na Lei da Operação, envolvendo obras que já possuem
projeto, e recursos já foram gastos e estão destinados para estas
finalidades.
Diante disso, requereram, em 20 de dezembro de
2021, à coordenação do grupo (que é realizada pela SMUL) que encaminhasse um
pedido de veto ao prefeito. Sem retorno em relação ao pedido, a Lei foi sancionada
sem nenhum veto. Na sequência apresentamos as três áreas, suas destinações e
como elas inviabilizam importantes intervenções na Operação.
Um dos imóveis é uma área de preservação permanente
do Córrego Água Branca que compõe uma área verde prevista em lei. Hoje possui vegetação e
arborização, faz parte do Parque Linear em construção, e está parcialmente
ocupada por uma área verde e pelo estacionamento da Telhanorte (ver Quadro 1).
Outros dois imóveis (Quadro 2 e 3) incidem sobre
o Plano de Urbanização do Subsetor A1. Este plano
urbanístico vem sendo desenvolvido desde 2014, fruto de concurso público, que
envolve um novo parcelamento do solo (já detalhado, em licenciamento), com
abertura de vias e conformação de quadras com 1.456 unidades habitacionais, além da implantação de
usos institucionais como a construção de um Território CEU Educativo, Cultural,
Esportivo e Múltiplos Usos e de uma Unidade Básica de Saúde (UBS). Já foram
gastos cerca de R$ 5,8 milhões com concurso público, elaboração do
projeto básico, executivo e gerenciamento do projeto do Subsetor A1, que
envolveu estudos para a mitigação da contaminação existente na área.
Sem estes dois imóveis, o parcelamento não será
aprovado, a LAP também não, as vias não poderão ser abertas, inviabilizando a
construção das habitações, cuja contratação de projeto executivo e obras de 728
habitações de interesse social está com edital aberto, publicado em 17 de
novembro de 2021. Certamente, se estas concessões fossem levadas para o debate
junto ao Grupo Gestor da Operação, não seriam aprovadas.
E mais do que isso, a concessão, permuta e
desafetação dos três imóveis se dão sobre áreas ocupadas, com usos que serão
removidos.
Figura 2. Área do Plano Urbanístico do Subsetor A1 da Operação Urbana Consorciada Água Branca. Fonte: Plano Urbanístico do Subsetor A1; apresentação da Reunião da Comissão Técnica.
Uso atual, projetos que estão ameaçados e o que está aprovado na Lei 17.735/2022
Explicamos o uso atual, os projetos para cada área
e o que propõe a Lei, a seguir:
Quadro 1 – Desafetação de imóvel na APP do Córrego Água Branca, permitindo poder vender (Área 13, art. 25 da Lei 17.735/2022)
Quadro 2 – Onde já tem uma cooperativa de reciclagem e galpão de escola de samba será concedida permissão de uso para a Escola de Samba Vai-Vai (Área XXXIII, art. 19 da Lei 17.735/2022)
A Lei 17.735/2022 inviabiliza a transformação na Água Branca
Como vimos, é grande o impacto desta Lei na
região da Água Branca. Ao transferir a propriedade ou a permissão de uso
destes imóveis, a transformação prevista na lei da Operação Urbana Consorciada
fica inviável. Ao não aprovar o parcelamento do solo, não existirão vias e
quadras; sem quadras não se dará a construção das habitações de interesse
social; e sem estes terrenos, não se constrói Parque, UBS e CEU previstos no
Plano de Urbanização do Subsetor A1; assim como impactará no Licenciamento Ambiental Provisório (LAP) de toda a
OUCAB (LAP 02-SVMA-G/2012, DOC de 13/04/12).
Os interesses fragmentados e nada transparentes na
inclusão destas áreas para permutas, concessões e alienações certamente não
justificam este retrocesso. Seria ideal que os vereadores e o Prefeito tivessem
refletido sobre esta fragmentação da gestão das terras públicas, antes de aprovarem
o PL. Em virtude de contrariar a Lei da Operação Urbana, o Ministério Público e
a Defensoria do Estado de São Paulo podem atuar a partir de agora.
Ao invés de uma política urbana construída por uma bricolagem de áreas públicas e projetos de lei, sem diálogo com a população afetada, e que certamente será judicializada, o desejo para 2022 era que as terras públicas tivessem um plano de gestão. Não ter este plano é especialmente crítico para as áreas onde há projetos urbanos em curso, evitando posteriores desapropriações ou cancelamentos de concessões custosos para o poder público.
*Paula Freire Santoro é professora doutora na
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, coordenadora do LabCidade,
representante suplente no Grupo de Gestão da Operação Urbana Consorciada Água
Branca na vaga destinada a entidades profissionais, acadêmicas ou de pesquisa
com atuação em questões urbanas e ambientais, pela FAU USP.
Laisa Stroher é professora da FAU UFRJ,
pós-doutoranda na FAU USP, pesquisadora do LabCidade e do LePur. É
representante titular no Grupo de Gestão da Operação Urbana Consorciada Água
Branca na vaga destinada a entidades profissionais, acadêmicas ou de pesquisa
com atuação em questões urbanas e ambientais, pelo Instituto dos Arquitetos do
Brasil/IAB SP.
Jupira Cauhy, Pedagoga, é representante titular dos
moradores e trabalhadores no Grupo de Gestão da Operação Urbana
Consorciada Água Branca.
Henrique Giovani Canan é estudante na FAU USP, e
atua como pesquisador do LabCidade.
Débora Ungaretti é advogada, doutoranda em Planejamento Urbano e Regional na FAU USP e pesquisadora do LabCidade.
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